[OPINIÃO] Charles Bukowski: condenado por uma máscara, culpado por jogar o jogo

Machista, misógino, misantropo, escroto, infantil, superficial, repugnante, detestável; a todo momento incontáveis insultos do tipo são direcionados ao escritor norte-americano Charles Bukowski, que, assim como Jesus Cristo, possui soldados por todos os lados, dispostos a lutar em seu nome, não por compreenderem o seu legado, mas por se sentirem ofendidos justamento por enxergarem as críticas proferidas contra o seu Messias como qualidades.

Bem, não venho aqui com o intuito de tentar livrá-lo das ofensas que lhe são atribuídas, muito menos a fim de desenvolver uma superficial súplica, para que considerem a sua narrativa levando em consideração o momento histórico em que vivia, afinal, reconheço que, diferentemente das narrativas, algumas ideias perecem, o tempo de vida é curto demais para que se leia textos repugnantes até o fim, e, o ato de desconsiderar o momento histórico em quaisquer textos, só faz sentido quando se deseja estudar história ou apreciar uma peculiar forma de estruturar palavras. No entanto, solicito, para que este texto tenha algum valor, que as minhas palavras sejam escutadas e consideradas por mentes abertas a novas compreensões, e ouvidos eivados de vícios oriundos de interpretações alheias, mesmo que depois riam do que digo, afirmem que estou defendendo um bandido, passando pano para macho, romantizando escrotices, ou sugiram que eu o leve para casa e deixe de vitimismo.

Inicialmente, acho válido pontuar que, na Europa, o velho Buk é tido como um dos grandes poetas da história, sendo admirado ou idolatrado por revolucionários anarquistas, comunistas, liberais, feministas, gays e diversos outros militantes de diversas causas. “Eles nunca leram os detestáveis absurdos escritos em livros como ‘Mulheres’ e ‘Crônica de um amor louco’?”, você deve estar perguntando, certo? Ocorre que, diferentemente do Brasil, onde seus romances e contos foram inicialmente introduzidos para apresentar a sua obra, na Europa, Bukowski se popularizou inicialmente como poeta, campo em que, pela maioria dos seus leitores e críticos, possui maior domínio.

Assim, como desdobramento da forte disseminação de obras como “Crônica de um amor louco” e, posteriormente, “Mulheres” (que deu um forte impulsionamento na discussão sobre o autor no Brasil), o escritor criou, no país, de forma genérica, uma imagem de ídolo aos olhos superficiais dos homens ainda educados a partir de uma cultura semelhante à do período medieval, sendo admirado por eventualmente escrever de forma crua e autoindulgente sobre beber e transar com mulheres de forma desmedida, e detestado por mulheres que leram uma ou duas obras suas, e imediatamente o condenaram por descobrirem que ele escrevia autoficção, pressupondo que o que estava nas páginas destes livros contemplava a essência da sua obra, ou, no mínimo, o que o autor admirava. Aqui, se encontra o cerne da minha questão.

Não está ao meu alcance exigir que insistam na leitura de um autor, mesmo depois de detestar dois livros, afinal, dificilmente eu faria isso – embora esteja considerando dar uma terceira chance a Gabriel Garcia Márquez -, todavia, está ao meu alcance vir aqui, depois de ter lido quase todos os seus livros traduzidos para o português, afirmar que, ler Bukowski, é como estudar sociologia. Sim, estou dizendo que, a partir da sua obra, é possível realizar uma espécie de estudo empírico a respeito do funcionamento das sociedades humanas e das leis fundamentais que regem as relações sociais e as instituições.

Explico: em diversos dos seus contos iniciais, no próprio Misto-Quente, ou até nas suas entrevistas e gravações posteriores, é possível notar características da sua infância. Bukowski era um garoto espinhento maltratado pelo pai, enxergado pela mãe (que também apanhava do seu pai em sua frente se o defendesse) sempre com um olhar de piedade, desprezado pelas mulheres durante e depois do colégio por sua aparência, e vítima de bullyng pelos colegas da escola. Em Misto-Quente, por exemplo, embora sejam narradas com certa naturalidade e fatalismo situações do período, é possível perceber uma triste sensibilidade em diversos momentos, como quando conta que a mãe o mandou sorrir, e sorriu, demonstrando como tinha de fazer, com o sorriso mais triste que ele já viu na vida, além dos diversos poemas e contos que também discorrem sobre o período.

Durante muitos anos, tudo o que Bukowski desejou foi ser amado. Escutado por alguém, admirado por ser quem era. Prostrado pelos pais, envergonhado perante a maneira com que o enxergavam, somente encontrou ouvidos e sinais de vida sem apatia nos bares, nas ruas, nas áreas marginalizadas. Desiludido, se trancou em bibliotecas, descobriu escritores que se sentiram ou se sentiam como ele, percebeu que o mundo favorecia os poderosos e cruéis, que eram os homens sem coração os que se destacavam, descobriu que a falta de arrogância fazia indivíduos serem devorados, passou a desenvolver uma casca, a se fingir de durão, criou Henry Chinaski, um alterego extremamente viril. Aprendeu a ser ácido e subversivo com os melhores, começou a receber elogios pelos contos depois de insistir para ser publicado rigorosamente, até conhecer John, o seu editor, e deslanchar com os romances, até estourar com “Mulheres”, talvez o seu romance mais repugnante e adorado. “Na minha história, o herói sou eu”, respondeu certa vez, ao escutar uma contestação sobre a veracidade dos fatos de seu romance “Hollywood”, resposta que também se aplicava quando suas mulheres ou ex-mulheres afirmavam que ele não as tratava da forma que escrevia, quando afirmavam que fora dos holofotes ele fazia o que pedissem, ou que pouco o viam beber.

Enquanto isso, embora por vezes deixasse sinais de um romântico sensível e derrotado em seus contos e romances, continuou publicando poemas esparsos e coletâneas, e era lá que sangrava vertiginosamente o homem por trás da máscara de Henry Chinaski. O homem endurecido pela sociedade, amargurado pelo desamor da família e disposto a tudo para concretizar o ditado que dizia que os humilhados seriam exaltados. Por conta disso, a sua obra se dissolveu com diversas facetas de um mesmo rosto. Uma delas a expor a figura do macho-alfa durão americano, fruto da carência de respeito e admiração que o autor carregou durante grande parte da sua vida, outra, a evidenciar o iconoclasta sarcástico que compreendeu o jogo da vida e jogou bem, e, por fim, a faceta mais oculta de todas, e por isso mais fascinante, responsável por deixar escapar o coração generoso e repleto de amor e receio daquele que deu a vida a poemas como “The Bluebird”, “The laughing heart” e “The crunch”.

Assim, na expectativa de que possam conhecer um pouco mais do seu trabalho, e perceber como a sua obra reflete as imposições indiretas provenientes da sociedade americana do século 20, convido o leitor interessado em sua obra, a realizar leituras simultâneas, alternando prosas como “Misto-Quente”, “Notas de um velho safado”, “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio” e “Ao sul de lugar nenhum”, a coletâneas poéticas, como a trilogia selecionada e traduzida pelo poeta Fernando Koproski, que contempla os trabalhos “O amor é tudo o que nós dissemos que não era”, “Maldito deus arrancando esses poemas da minha cabeça”, e “Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo, amém”, a fim de que possa embarcar nessa reflexão e também se encantar com o viés literário, histórico e sociológico contido, de forma não intencional, em obras tão singulares.

Noutras palavras, de forma mais sintética e didática para este tempo, poderia dizer que Henry Chinaski foi criado como o coringa de Joaquim Phoenix, e Charles Bukowski é uma espécie de Arthur Fleck. Como leitor, qualquer um poderá ler duas das suas obras, pressupor saber que tipo de homem ele era e condená-lo, contudo, fazendo isso, é preciso que se saiba que estará abrindo mão de uma das melhores surpresas que a literatura pode proporcionar: a de compreender que o que está escrito, não significa, necessariamente, aquilo que está escrito. Não são muitos os escritores que possibilitam esse tipo de leitura. “Repare bem o que não digo”, frase escrita por Leminski, poderia muito bem ter sido dita por Bukowski, mas, talvez, ele preferisse continuar a encantar os sujeitos medievais pela grosseria evidente, e, ao mesmo tempo, os que reparam as entrelinhas. “Tudo o que fazemos na vida, não fazemos para sermos mais amados?”, escreveu Richard Linklater no roteiro de Before Sunrise.

Certa vez, escreveu: “Eu estava deitado na cama à noite e disse: ‘Eu vou desistir. Pro inferno com isso!’. E outra voz em mim dizia: ‘Não desista. Salve uma pequena brasa… Uma faísca. E nunca dê essa faísca, pois enquanto você a tiver, sempre poderá começar uma chama maior.”, e, seja no conto sem título onde narra a vizinhança ir até a janela, ansiosa para ver um gato sendo encurralado e atacado por cachorros instruídos a atacá-lo pelo seu dono para metaforizar a natureza sádica e desprovida de empatia da humanidade; no poema “Nirvana”, quando discorre sobre as mágicas cotidianas que ninguém nota, ou quando escreve, no poema “O Estouro”, “as pessoas não são boas umas com as outras. / talvez, se elas fossem, / nossas mortes não seriam tão tristes. (…) / com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda não pensamos. / quem colocou este cérebro dentro de mim? / ele chora / ele demanda /ele diz que há uma chance./ ele não dirá/ “não”.”, eu consigo ver o verdadeiro Charles Bukowski, com a sua ingenuidade engolida, mas com uma faísca sempre acesa.

Por um tempo, quando pensava nele em carne e osso, imaginava um sujeito amargurado e desalmado pela vida, entretanto, depois de conhecer melhor a sua obra, lembrando dos seus últimos trabalhos, do jubiloso humor contido em “Pulp” e da felicidade genuína e constrangida oculta em seus últimos poemas, passei a enxergá-lo como um garotinho num corpo de velho. Um lutador cansado de ir a nocaute. Um ancião que reconhece os equívocos que cometeu, mas não se arrepende, afinal, somente depois de fingir ser quem não era, pôde voltar a si, e enfim realizar o seu sonho de ser escutado, admirado e amado por alguém.

 

Texto de Matheus Pelteiro.

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